quarta-feira, 18 de março de 2015

O Município de Roseira – Pioneiro no Povoamento das Terras de Guaratinguetá


A formação histórica dos núcleos urbanos no Vale do Paraíba foi resultado de dois pontos importantes, os quais foram: em primeiro, o processo de ocupação do território pela necessidade da busca de mão de obra indígena e pedras preciosas, acompanhando a lógica do povoamento do território paulista desde São Vicente, seguindo as picadas e velhos caminhos indígenas serra acima até chegar a São Paulo e dali rumo ao Vale do Paraíba.  E, em segundo, a fundação de três importantes vilas no século XVII: Taubaté, Pindamonhangaba e Guaratinguetá. Todas três com extenso território administrativo e judicial. Principalmente a vila de Guaratinguetá, cujos limites estendiam-se até as divisas com a Capitania do Rio de Janeiro, no Rio Piraí, Parati (no alto da serra da Bocaína) e Minas Gerais, na divisa com a vila de Baependí.   Ambos possibilitaram, dentro desta realidade, o povoamento do que hoje é considerado o Vale do Paraíba Paulista. Ou seja, a ocupação sedentária de terras devolutas em zonas de fronteira agrícolas, em direção ao Rio de Janeiro e Minas Gerais, por famílias de migrantes saídos das Vilas de São Paulo, Mogi das Cruzes e cercanias. Assim como de imigrantes portugueses, principalmente a partir da primeira metade do século XVIII, agilizada pela abertura de um Caminho Novo para o Rio de Janeiro. Num longo processo de assentamento do homem na terra pelo único meio possível: a posse legal ou não de terras, a exploração da agricultura, para a maioria, e o comércio, para os poucos que já possuíam algum pecúlio e fazer considerável fortuna. O que criou já na segunda metade do mesmo século a necessidade, por parte do governo e da população, do desmembramento desses enormes territórios cada vez mais povoados. Constituindo-se num padrão para toda a região, o qual seria a exigência de certas áreas terem um governo municipal próprio por iniciativa da população (por abaixo assinados e plebiscitos) e acatamento nem sempre imediato dos pedidos. 
Dessa forma, a vila de Guaratinguetá foi perdendo gradativamente o seu imenso território com a criação de novas vilas e cidades. O que ocorreu até a segunda metade do século XX, com a emancipação de alguns municípios, dentre eles a cidade de Roseira, em 1965, cuja história, pré-emancipação, sempre foi reconhecida como da vila de Guaratinguetá. O que causa a ilusão de que o município nunca teve uma história anterior a ser resgatada.
No entanto, o município de Roseira é um velho território de povoamento, com uma história importante na formação social, econômica e política do Vale do Paraíba. Um pioneiro no povoamento das terras das Garças Brancas. Em linhas gerais, uma velha senhora jovem.
Ainda no final do século XVII, ocorrem os primeiros assentamentos imóveis em terras do município, em continuidade ao processo de ocupação de terras devolutas a partir e próximos da vila de Pindamonhangaba, em direção a Guaratinguetá, principalmente na margem direita do Rio Paraíba, acompanhando o antigo caminho São Paulo para o Rio de Janeiro, e a encosta da Serra do Quebra Cangalhas.  Na rota da antiga Roseira Velha e do outro lado do morro, no atual Bairro do Bonfim, região do Ribeirão dos Motas, onde existiram terras férteis, propícias para a agricultura e com ligação comercial direta com o Caminho Velho[i] para Parati, principal porto para escoamento de mercadorias.
As primeiras posses legais de terras, chamadas de sesmarias[ii], solicitadas por pessoas com famílias e doadas pelo governo da Capitania de São Paulo (antigo designação do Estado), ocorreram, algumas delas, ainda no final do século XVII e começo do seguinte. Embora não se tenha data exata, apenas por informações esparsas indicando nomes que até ainda permanecem.
Das mais antigas, foram as terras ao longo dos Ribeirão dos Motas, próximo das encostas da Serra do Quebra Cangalhas (Bonfim), cuja nominação provem de um antigo costume cultural de identificar o bairro com o sobrenome da família que no local estabeleceu remotamente, como uma espécie de identificador social.  Na localidade assentaram agricultura alguns filhos de Gonçalo da Mota Bitencourt e de Catarina Páscoa de Oliveira, naturais da Ilha de São Sebastião, cujos nomes eram: Salvador da Mota de Oliveira, casado com Maria do Rêgo Barbosa, e Pedro da Mota Pais, casado com Margarida Bicudo. Deixando imensa prole, com descendência até os dias atuais. E assim também o nome do bairro, que acabou por abranger um longo trecho até desaguar no Rio Paraíba. Bem como os descendentes de Francisco Borges Rodrigues e Miguel de Goés, todos do final do século XVIII, quando ainda o Vale do Paraíba passava por uma pobreza extrema, obrigando o homem assentar-se na terra, como uma das únicas opções de sobrevivência. E o mineiro, Capitão Luiz Dias de Almeida, proprietário de légua e meia de terras de testada na parte superior do Ribeirão dos Motas, na paragem chamada Cachoeira do Mato Dentro, comprada de outros mais antigos moradores anônimos: João Siqueira, Salvador Duarte, Rita Pais e Manuel Rodrigues da Fonseca.
O bairro, nesse trecho, foi um dos que mais prosperam em termos econômicos para a Vila de Guaratinguetá, principalmente no auge da produção do café na primeira e segunda metade do século XIX, com pequenas e médias propriedades, resultado dos diversos desmembramentos das sesmarias da família Mota Pais, por herança e por venda. Era a região com o maior número de propriedades agrícolas em 1856, segundo o Registro Paroquial de Terras[iii]. Tanto que já no final do período áureo do café e mesmo posteriormente, registra-se no Bairro do Bonfim grande prosperidade, com a presença de pequeno centro comercial para atender os moradores da cercania. E uma capela para as atividades religiosas e sociais da comunidade.
No período entre 1765 e 1836, segundo o Recenseamento das Ordenanças, a população local estava constituída de brancos e grande percentual de negros e mulatos, escravos e alforriados, trabalhando com a cana de açúcar e depois o café, também em pequenos sítios que além da agricultura para a exportação, eram voltados para a cultura de subsistência das famílias ou para o comércio de venda dos excedentes, entre os vários vizinhos e proprietários.  Militarmente, no começo do século XIX, pertencia parte para a 2ª Companhia (Aparecida), e outra para a 4ª Companhia das Ordenanças (Motas) da Vila de Guaratinguetá[iv]. Ali, nas décadas de 1840-1860 formaram-se importantes propriedades: A Fazenda Santana do Morro Alto, pertencente ao Major da Guarda Nacional[v], Bento Antônio de Campos, assassinado pelos seus escravos, em 1879, assim como o pai, em 1828, no município de Cunha. Ambos senhores de grande plantel de escravos, cuja má índole foi famosa em toda a região.  A fazenda da Conceição, até hoje existente. A Santa Leopoldina, de propriedade do Barão de Taubaté. E a fazenda de José dos Santos Oliveira Velho, também assassinado em tocaia por questão de briga judicial de terras, no qual episódio foi mandante outro rico fazendeiro da localidade, Manuel José Bitencourt. Ambos sepultados no Cemitério Senhor dos Passos, em Guaratinguetá.
Já no percurso da antiga Estrada Real, percorrida pelos Imperadores Dom Pedro I e Dom Pedro II, respectivamente em 1822, e na segunda metade do século XIX, nas encostas dos morros, na parte acima da dita estrada, inúmeras propriedades se formaram da mesma maneira, dando origem também ao antigo povoado de Roseira Velha, núcleo principal da comunidade até a metade do século seguinte.
Entre as importantes fazendas existem os exemplos, ao longo da estrada: A fazenda das Taipas, no também chamado bairro de Pirapitingui, que pertenceu ao Capitão Manuel Pereira de Barros e sua esposa, Francisca da Cunha Bueno, pais do Major Vitoriano Pereira de Barros, grande benfeitor de Roseira, que nas mesmas terras recebeu o Conde D’Eu, com uma história curiosa sobre o comportamento social dos fazendeiros na época. A fazenda Roseira, de propriedade de Máximo Monteiro dos Santos, casado com Benedita Francisca dos Santos. Nela a terra era cuidada pelo serviço de 21 escravos. A Fazenda Boa Vista pertencente a João Galvão de França e sua mulher, Dona Gertrudes Guimarães França, da mesma família da fazenda do Morro Vermelho, na entrada de Guaratinguetá, cuja sede, durante muitos anos, esteve em posse do saudoso Professor José Luiz Pasin e hoje abriga a Faculdade de Roseira – Faro.  E, por último, a Fazenda Veloso, de propriedade de Antônio Jacinto Guimarães e sua esposa, Dona Francisca Lescura França Guimarães.
Semelhante progresso econômico ocorreu nas imediações próximas do Rio Paraíba, atual Bairro de Pedro Lemes, limítrofe ao bairro do Itaguaçú, em Aparecida, cujo terreno fora fértil para o plantio do arroz. Ali recebeu, por volta da década de 1730, uma grande sesmaria o Capitão Amaro Lobo de Oliveira, residente na vila de Jacareí, que deixou grande descendência em Aparecida e em Guaratinguetá. Nela produzia seu sustento e tinha um engenho de cana para fabrico do açúcar e de aguardente.
Foram, portanto, por razão dessas propriedades, pioneiras glebas de terras, povoadas no século XVII e XVIII, que surgiu o município de Roseira, que se pode seguramente dizer que foi baluarte na manutenção do desenvolvimento da região de Guaratinguetá.
REFERÊNCIAS

Bibliografia

ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO.  Sesmarias – 1720-1736.  São Paulo/Edição do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1937.

MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de.  Os Galvão de França no Povoamento de Santo Antônio de Guaratinguetá.  3. ed. São Paulo, Ed. da Universidade de São Paulo, 1993.

SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA.  Repertório de Sesmarias.  São Paulo, 1994. Ed. fac-similar.

Fontes Primárias

ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Recenseamento das Ordenanças de Guaratinguetá – 1765-1836.

ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Registro de Terras de Guaratinguetá – 1856.

MUSEU FREI GALVÃO/ARQUIVO JUDICIÁRIO.  Inventários e Testamentos do 1º Ofício de Guaratinguetá – 1710-1962.

Imagem: Roseira Velha - Desenho de Tom Maia.


[i] Designação da antiga rota de Guaratinguetá para Parati, passando pela Vila de Cunha. Muita utilizada durante o período do ouro nas Minas Gerais. Daquela cidade portuária o ouro era transportado em navios para o Rio de Janeiro, e daí para Portugal. Foi, aos poucos, perdendo sua importância econômica com a abertura do Caminho Novo (antigo traçado de parte da Rodovia Rio-São Paulo, passando pelas cidades históricas do Vale do Paraíba).
[ii] Sesmarias eram porções de terras de tamanho variado, geralmente de meia légua de testada e uma de fundos, doadas pelo governo da Capitania de São Paulo para famílias que tinham pretensões de estabelecer benfeitorias e nela fazer produzir economicamente. Na maioria das vezes, eram solicitadas pelos interessados com possibilidade mínima de mantê-las produtivas. Ou compradas a outros e confirmadas por documento expedido pelo mesmo governo. Tendo o prazo de dois anos para medir e demarcar, com prejuízo de perder em caso de omissão.
[iii] Série documental existente por força da Lei de Terras promulgada em 1850, para que todos os proprietários pudessem declarar e legitimar a posse de suas terras. Era lavrada, em cada vila, pelo vigário da paróquia. Tornou-se documento comprobatório de terras utilizado até os dias atuais. Possui informações sobre tamanho da propriedade, tipo de aquisição, antigos proprietários e divisas.
[iv] As Companhias das Ordenanças (soldados) foram criadas em 1765, pelo Governador da Capitania de São Paulo, Morgado de Mateus, com o objetivo de recensear a população para fins de convocação militar de defesa do território e existiram até 1836. Cada companhia, geralmente representava um ou mais bairros da vila.  E com o passar dos anos passou a ter função exclusivamente econômica, trazendo inúmeras informações de cunho social, econômico, político e demográfico. As famílias eram recenseadas por fógos (domicílios), designando suas funções e sua produtividade a cada ano.
[v] Corporação militar criada em 1831, substituindo as Ordenanças, cujas funções variaram de acordo com o tempo, originalmente como corpo policial de defesa. Com o decorrer dos anos tornou-se símbolo de poder e mandonismo político, principalmente durante o Segundo Reinado. Das suas fileiras é que se originaram os antigos coronéis da política, com seus redutos eleitorais. Até pouco mais de meio século ainda existentes.

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