terça-feira, 10 de março de 2015

O Brasil Sob o Olhar de um Contrabandista


Acabo de ler o relato do viajante inglês Thomas Lindley, intitulado “Narrativa de uma Viagem ao Brasil”. Não é um romance, mas muito mais um documento histórico revestido de grande importância, assim como de tantos outros homens estrangeiros que visitaram o Brasil ao longo da sua existência. Muito menos é o mais utilizado e festejado dos relatos acerca do país, se comparado a Jean-Baptiste Debret e tantos outros. Ele é, acima de tudo, um relato do fim colonial brasileiro e algo substancial em termos de descrição do olhar europeu, diferindo, sobremodo, de outros vindos posteriormente.
É por acaso um diário do cotidiano dos homens, do seu governo, e dos seus costumes, embora sem a carga analítica da “Viagem Pitoresca Através do Brasil”, de João Maurício Rugendas.
Enquanto outros se detêm na descrição quase puramente física dos locais visitados, Thomas Lindley registra aspectos sociais importantíssimos para o historiador, de um período ainda pouco estudado e compreendido. Qual é o que antecede em alguns anos a chegada da Família Imperial ao Brasil, precisamente entre os anos de 1802-1803. A realidade de um país ainda governado por Vice-Reis e por Capitães-generais das Capitanias, permeado pelos interesses pelo público a favor do privado. Numa terra que prospera uma burocracia pessoal de favores, onde as decisões nem sempre eram as de Portugal.
A obra descreve o cotidiano do contrabandista, negociante e aventureiro fracassado de várias colônias, Thomas Lindley, enquanto prisioneiro em cárceres de Porto Seguro e Salvador, na Bahia, o qual foi feito prisioneiro quando desembarcou para reparos no seu brigue (não tinha finanças suficientes para pagar) e para consolidar certas negociatas com as autoridades ali estabelecidas, como no caso, com o Ouvidor Geral, seus parentes e outras autoridades.  Sem notícias dos inúmeros requerimentos encaminhados para as autoridades residentes e para Portugal, foi obrigado a ficar e, como desenlace, arquiteta sua fuga junto a amigos da mesma natureza e deixa o Brasil após longa residência forçada.
Trata-se de uma obra, classificada por alguns autores, como resultado do olhar de um homem de negócios, de caráter depreciativo, propício a comunicar má impressão sobre o país. Embora de agradável leitura e com algum espírito de exatidão e certa imparcialidade. E mesmo discordante em comparação a outros que visitaram o país na mesma época. Como o caso do príncipe Maximiliano de Neuwied, cuja impressão foi a de uma colônia onde não mais existiam tantos abusos, costumes ridículos, hábitos antiquados e discordantes do espírito do período, como os observados pelo negociante Lindley. Diferentemente do que observou Lindley, entre outras coisas. Entre eles, o horário das refeições, durante as quais as pessoas do maior respeito e autoridade deixavam os talheres de lado para saborear a comida com as mãos (LINDLEY, 63: 1969).
Impressa em 1805 e depois 1806 (edição francesa e alemã), a obra é o rastro e o fio para pensar as várias partes do Brasil no mesmo período para uma pesquisa reflexiva sobre a maneira de viver na colônia.  Notadamente temáticas para o convívio social da população do Vale do Paraíba, que em certos estudos já foram esmiuçados.
Entre os destaques: a temática da morte, a extrema unção, o cerimonial de sepultamento; roupas e hábitos de vestir; dieta e alimentação; a conduta dos militares e a justiça; o delicioso costume de “arrancar piolhos”; a saúde pela epidemia generalizada da sarna; modos de plantio da mandioca, a medicina pelo método da sangria e a varíola sempre constantes nas partes do país; descrição das prisões, a mercê da medalha da Ordem de Cristo e os santinhos de proteção; usos e costumes das mulheres; feitiços, rezas e mandingas; os embustes da justiça; as missas pagas, o latim e os jesuítas; as relações sociais do empregado branco e o patrão; os músicos negros, o tramites do processo judicial, o comércio ilegal de alguns produtos; o comportamento dos soldados militares; as festas religiosas; penas de traição; e a literatura do período. Entre tantos outros temas que se constituem pontos de partida para pesquisa na região do Vale do Paraíba. E que os documentos, em série principalmente podem trazer ao crivo do historiador para analisar os aspectos sociais, econômicos e políticos. 

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