quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Os Testemunhos nos Processos Judiciais

Para um bom começo de ano, ativando o raciocínio através de novas leituras e releituras, optei pelo hábito saudável do retorno aos textos percorridos anteriormente. Salutar pelo motivo de trazer perspectivas diferentes, suscitando abordagens e ideias novas.
Foi o caso de outra leitura do capítulo III do livro “A Herança Imaterial”, de Giovanni Levi, com o título “Três Histórias de Famílias: os núcleos parentais” (1).
No exercício para rever leituras pretéritas, indo no sentido anti-horário da busca de novo aprendizado no ano que começa, tendo como base o referido texto, ocorreu-me discorrer especificamente sobre algumas observações que o autor coloca aos leitores sobre a questão de seguir os rastros de um grande número de indivíduos de determinada comunidade por intermédio das informações deixadas nos registros públicos. Tal texto fez pensar nos processos cíveis existentes nos cartórios judiciais das vilas e cidades do interior do país num período de mais de trezentos anos.
Levi fala (p. 87) sobre a reconstrução prosopográfica (2) e biográfica de indivíduos e a precariedade que isso pode representar na pesquisa história. Segundo ele, através do resgate da vida de moradores de uma determinada comunidade conseguimos detectar uma história possivelmente mais ampla por intermédio de indivíduos selecionados socialmente, ou seja, que deixaram rastros em diferentes tipologias documentais por sua presença ativa na comunidade, podendo, a partir daí, reconstituir socialmente comunidades inteiras pelo conjunto de seus moradores. Porém, com o alerta de que não se consegue atingir a totalidade, correndo o perigo de chegar a resultados abstrativos da criatividade do pesquisador.
Isso transposto para a nossa realidade documental-histórica, embora todas as limitações, remete-nos para a importância das testemunhas e dos envolvidos nos processos cíveis (3) amplamente diversificados, pois neles são encontradas pessoas comuns, com profissões e origens diversos, desde o mais humilde até ocupantes de cargos públicos.
Neles encontramos olhares diferentes e variáveis quanto ao tipo de resolução das demandas sob a luz das leis portuguesas e brasileiras, principalmente das Ordenações Filipinas (4), que permaneceram como escopo de análise jurídica até 1916, quando foi aprovado o Código Civil Brasileiro.
Além dos formatos discursivos judiciais e dos procedimentos processuais repetitivos, constante por longo número de folhas, lembrando as assertivas de Levi no capítulo III, existe um universo de possibilidades enquanto instrumento para dar voz a indivíduos que nem sempre tinha intensa representatividade social, o que aumenta a chance de análise das maneiras de pensar o mundo no período sob um foco diversificado, diferentemente das idéias meramente elitistas, no sentido de entender principalmente o homem colonial no Vale do Paraíba. As diferenças nas falas aparecem sedimentadas, fruto dos laços parentais complexos diluídos em atitudes inteligíveis e incompreensíveis no conjunto das relações intra-familiares.
É obvio que se trata de uma tarefa hercúlea auscultar o sentido das palavras e os processos ideológicos imbricados na teia social do interior do país, mas fundamental para as tentativas de caracterizar modelos gerais dentro de uma lógica estrutural.
Por enquanto, é importante despertar interesse por aquele tipo de fonte. Que o diga Maria Sylvia de Carvalho Franco (5).

Notas

1- LEVI, Giovanni. A Herança Imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Membro de uma família judaica, seu pai Ricardo Levi foi militante do grupo antifascista Giustizia e Libertà durante a Segunda Guerra Mundial o qual junto com a militância de seu tio Carlo Levi autor do clássico: Cristo se paró en Eboli; marcaria a forma de conceitualizar o mundo do jovem historiador. Junto com Carlo Ginzburg é reverenciado como fundador e pai da microhistória italiana. A qual é considerada como uma das aportações teóricas e prácticas mais importantes, inovadoras e frutíferas que se tem feito aos estudos históricos a partir da Revolução Cultural que significou o 1968.
2- Prosopografia: "descrição de uma pessoa" (prosopon grego: "personagem (teatro)", quando "pessoa", "indivíduo" em geral.). Para os historiadores da antiguidade, a Prosopografia era uma ciência auxiliar da história, cujo objetivo foi o de estudar as biografias dos membros de uma categoria específica da sociedade, principalmente elites, social ou política . Por metonímia, "Prosopografia" inclui também o livro em que personagens são ordenados alfabeticamente e registos individuais, com uma descrição das características selecionadas para o estudo.
3- Por processos cíveis, entende-se, aqui, a todos aqueles originários de demandas a serem resolvidas perante o judiciário, com a exceção dos inventários e testamentos. Em sua multiplicidade, citamos, entre outros, os crimes de diversas naturezas, as pelejas de medição e repartição de terras, cobranças de dividas, alforrias, vendas de heranças e de escravos.
4- As Ordenações Filipinas não são portuguesas e nem brasileiras. Foram promulgadas por um monarca espanhol em 11 de janeiro de 1603 (Filipe III, na Espanha, ou Filipe II, quando rei em Portugal) e, aqui, no Brasil, vigoraram até 16 de dezembro de 1830. Depois, foram sucedidas pelo Código Criminal do Império, este construído a partir da Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824.
5- FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. 3. ed. São Paulo: Kairós Livraria Editora, 1983. A autora trabalhou consultou inúmeros processos crimes da vila de Guaratinguetá, entre os anos de 1880 e 1890.

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