segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Conselheiro Rodrigues Alves Revira na Tumba

Nunca soube, por nenhuma fonte escrita ou oral, que o Conselheiro Rodrigues Alves tenha professado o espiritismo. Pelo contrário, em vida, ao que se sabe, foi extremamente católico e fiel aos ensinamentos cristãos, aplicando-os no cotidiano da política, no executivo, no legislativo, e mesmo afastado dos cargos públicos eletivos. Exercia o seu catolicismo principalmente na família, que cuidou com esmero ao longo de grande parte da vida. Respeitando até a sua viuvez, para o resto de sua existência terrena. As cartas da filha Catita que digam. Atualmente conservadas no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Mas o que aconteceria, entre tantos fatos possíveis, se o Conselheiro fosse um discípulo de Alan Kardec. Penso que, não estando reencarnado, estaria observando a política brasileira e paulista.
Horrorizado, principalmente, com a displicência sobre sua memória terrena. Sem trégua estaria revirando na tumba, pelo descaso com parte de seu significativo legado. Amargamente enxergando o que o seu Estado e a sua Cidade, por seus políticos inertes e obliquamente inteligentes, estão fazendo com aquela que foi a sua casa e hoje é o imóvel fantasma que um dia foi o dinâmico Museu Conselheiro Rodrigues Alves. Onde ainda está abrigado parte do seu cotidiano de vida. Memória e história em abandono, entregue a toda sorte de elementos naturais destrutivos, sem chance de reconstituir, pelo menos em sua grande parte.
Fechado por mais de cinco anos, o que atualmente ainda resiste é apenas resquício do que foi o conjunto exposto ao público desde a sua abertura. O acervo está sendo destruído pelo cupim, alojado quase que exclusivamente numa sala, onde a umidade também impera e é impiedosa.
O prédio, reformado (e não restaurado), reiniciou o processo de degradação física, comprovando o dolo com o dinheiro público dos políticos responsáveis, que continuam a brincar com a coisa pública. Tratam-no como coisa privada, objeto de barganha política com interesse notoriamente eleitoreiro, sem nenhuma finalidade cultural para a comunidade.
Dizem que o erário municipal não tem condições de mantê-lo, mas recordo que ele sempre funcionou com quase nenhuma verba, fosse estadual ou municipal. Os últimos funcionários chegaram mesmo a trabalhar um ano gratuitamente para o Estado, com o afinco de não deixar morrer o ideal de preservar a memória e a história. Divulgando a cultura local e regional. E funcionou desse modo durante muitos anos. Portanto, é mexerico e inverdade, e mesmo desculpas esfarrapadas, dizer que não tem condições de reabrir a instituição e mantê-la funcionando.
Querem sim, usá-la como instrumento de troca, de favorecimento, com claro intuito demagogo como sempre foi. Querem transformá-lo em secretaria municipal sem nenhum planejamento anterior, para virar um local sem identidade própria. Preferem ganhar mais um espaço público dito cultural, no caso um teatro para a cidade, em troca de geri-lo. Cujas negociações se arrastam por parte do Estado e do município sem nenhum resultado. Uma briga de figurões da vaidade que emperra o processo de municipalização. Que ainda tem que passar pelo crivo da Câmara Municipal. Museu e teatro jogados para a ruína, pelo delírio de pessoas pouco afeitas ao raciocínio do bom senso.
O descaso chegou ao Ministério Público, mas por “forças ocultas” até agora não se manifestou em termos concretos. E muito menos puniu os verdadeiros responsáveis por tamanha barbárie cultural. Parece que não conseguem chegar a um consenso sobre. As partes se manifestam usando os argumentos mais pífios. Para safar da incúria e da odiosa falta de compromisso. Cada hora é um argumento; a cada momento um instrumento jurídico interposto para ganhar tempo, fugir da responsabilidade e nada fazer. E se fizer, serão da maneira mais desastrosa, antiética, e nada profissional. Similar a um trampolim ou poleiro para apadrinhados. 
Até quando o Conselheiro Rodrigues Alves, de sua tumba, vai gritar por socorro. E ver que aquilo que tanto prezou em vida está se perdendo. Perde-se o patrimônio do povo e perde-se a lisura, a honestidade e a boa vontade por parte dos homens públicos. Certamente está consciente de que não existe mais governo sério, que não cuida do público, e que apenas priorizada a vida privada.
Podem ter certeza, caros leitores, ainda existe solução para o Museu Conselheiro Rodrigues Alves. E mais ainda, pessoas disposta a dar o suor para colocá-lo novamente ao alcance da comunidade. Ideias existem, mas ninguém consulta os verdadeiros profissionais que sabem e bem fazem um bem maior pela cultura.
Não vamos acreditar em dificuldades financeiras, nem em outras desculpas, muito menos em boas intenções. Disto, o inferno está cheio.
Imagem: BIBLIOTECA NACIONAL. Gazeta de Notícias - 14/08/1904. 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

O Alferes João Ferreira Guimarães e a Fazenda Pau D'Alho

A abertura do Caminho Novo, do Vale do Paraíba para o Rio de Janeiro, durante o século XVIII, foi fundamental para criar novas oportunidades econômicas para a população de diversas vilas da região e contribuiu para a migração de um grande número de indivíduos vindos das Minas Gerais. Especialmente saída de Guaratinguetá, Lorena e outras vilas da região. Proporcionando, desse modo, a possibilidade de exploração e povoamento de uma nova zona de fronteira agrícola aberta no atual território do Vale Histórico (Bananal, Areias, etc.), em direção a São João Marcos, litoral fluminense (Angra dos Reis e Mambucaba), Fazenda de Santa Cruz, e finalmente a sede da Colônia. Facilitando, com isso, a concretização de fatores preponderantes para o desenvolvimento da região, logo após a queda da mineração: a ocupação e proveito de imensas áreas devolutas; o escoamento terrestre da produção agropecuária para o comércio carioca, sem a necessidade de percorrer o exaustivo roteiro por Parati; a possibilidade de enriquecimento de pequenos agricultores e comerciantes; o efetivo combate ao contrabando de ouro das Minas Gerais; e o aparecimento de novos núcleos urbanos, onde prosperou a plantation do açúcar, do café e dos produtos de subsistência e de origem animal, no século que se seguiria.
A construção do caminho, seguindo pelo rumo da rota das boiadas, teve inicio ainda na primeira metade do século XVIII com as primeiras investidas de Domingos Antunes Fialho e de outros moradores das vilas de Guaratinguetá e Lorena. Tendo somente sido concretizado depois de 1760, quando o Capitão mor de Guaratinguetá Manuel da Silva Reis assumiu a empresa, terminando-o na década de 1770, quando por ordem real recebeu poderes para distribuir terras em grandes sesmarias aos solicitantes, que teriam condições de desbravar, cuidar e cultivar o sertão inculto á margem da serra da Bocaína.
Nesse período, muitos mineiros desceram a serra em direção ao Vale do Paraíba em busca de novas oportunidades, devido ao desgaste das terras auríferas, ao alto preço da derrama, e ao episódio da Inconfidência Mineira. Estabelecendo residência na região do Vale do Paraíba Paulista e fluminense. Como foi o caso do Alferes João Ferreira Guimarães, português nascido (1750) na Freguesia de São Martinho de Silvory, termo da Vila de Guimarães, Arcebispado de Braga.
Após ter imigrado para o Brasil, juntamente com os pais (Thomé Álvares Pinto e de Catarina Ferreira), estabeleceu residência nas Minas Gerais, na região aurífera de Aiuruoca, entre as décadas de 1770-1780. E nessa localidade casou com Isabel Maria de Souza[i]. E depois de ter residido em Rezende[ii], por breve período de tempo, transferiu moradia para a região do Caminho Novo, onde criou laços familiares sólidos, deixando história e numerosa descendência.  Levantando engenho e fazenda que deram origem a algumas das principais fazendas de café, notadamente a Fazenda Pau D’Alho. Ficando conhecido como o “Velho da Serra” [iii].
Nessa localidade solicitou doação ao governador da Capitania de São Paulo, Capitão-General Bernardo José de Lorena, de uma sesmaria, próxima das terras onde futuramente seria elevada a futura vila de São José do Barreiro, termo da Vila de Lorena, onde já possuía outras terras e fixou residência. Recebeu-a em 07/10/1796, em parceria com Antônio da Silva de Siqueira e David do Prado Machado, na rota da Estrada Geral, na paragem denominada Barreiro (ou Ribeirão do Barreiro), com

“... novecentas braças de terras de testada na estrada, que vai para o Rio de Janeiro e huma légua de certão meya para cada lado do dito Caminho, partindo de hum lado da parte de leste em terras do Guarda mor Pedro da Cunha, e da parte do Este com terras do mesmo Suplicante...” [iv].

que ficou anexa[v] as outras contíguas de sua posse, adquiridas por compra que fez da sesmaria de Antônio João de Araújo (recebida em 12/08/1785 e revalidada pelo Alferes)[vi] e de Antônio da Silva de Siqueira e sua mulher, Maria Moreira, em 04/09/1792[vii]. Assim descrita no documento de compra:

... Hum citio e terras na Estrada do Caminho Novo na paragem chamada o Ribeiram do Barreiro, termo dito da villa de Lorena: cujo citio consta de huas cazas de vivenda com três lansos cubertas de Telhas e parede de mam com seis portas, e três jannelas; e assim mais hum lanso de casa cuberta de telha, que serve de cuzinha; e assim mais dois lansos de caza também cuberta de telha, que serve de payol: com hum Monjollo, e arvoredos de Espinhos, e assim mais quatro lansos de caza cuberta de telhas, que serve de Ranxo de passageiros: e tudo se haxa cituado em hua sorte de terras, que tem de Testada nove centas Brassas medidas pela Estrada; ou o que se achar emtre o marco que divide as terras do dito comprador Joam Ferreira Guimaraes, e o marco que divide as terras do Guarda mor Pedro da Cunha, com cujos partem as ditas Terras: e com mea Legoa de Sertam para cada lado da Estrada servindo a mesma de Piam; cujas terras disseram elles vendedores que as ouveram por lhes haver dada em nome de Sua Magestade o Capitem Mor Regente do destrito Manuel da Silva Reis, de que lhes passou hua sédulla, ou consesam, em virtude da qual elles ditos vendedores as tem Logrado, possuído, e cultivado com posse pessoal, e atual, há bastante annos, sem contradissam de pessoa algua cujo citio, e terras asima declarados, disseram elles outorgantes vendedores, que vendiam, como com effeito vendidos tinham de hoje para todo o sempre a Joam Ferreira Guimaraes, por presso e quantia de quatro centos e sincoenta mil reis em dinheiro, moeda corrente deste Reino, que confessaram elles vendedores haverem recebido do que dou fé...  

Com isso, desenvolveu, nas terras adquiridas e anexadas, o engenho de açúcar, a fazenda de criar e rancho de tropas e, posteriormente a fazenda de café, no decorrer do século XIX. Propriedades que permaneceriam na família até meados do século seguinte, conhecidas como Fazenda Pau D’Alho (segunda metade do século XIX) Barreiro e Engenho do Barreiro (primeira metade do mesmo século). Desmembradas por partilha a partir da década de 1810 entre os inúmeros herdeiros deixados[viii]. Ficando, porém, em situação pro-indiviso[ix], em comum com todos os titulares, segundo afirmação extraída do inventário da herdeira Anacleta Ferreira de Souza, esposa do Capitão Fortunato Pereira Leite, em 1835[x]. Mas plenamente reconhecida em termos de extensão por cada qual, no Registro dos Bens Rústicos[xi].
Por ocasião da declaração desses bens imóveis, exigida pelo governo do Reino Unido de Portugal e Algarves (1817), a Fazenda Pau D’Alho[xii] (905x4500)[xiii] e Barreiro (810x750) estavam na posse do Capitão João Ferreira de Souza; e o Engenho do Barreiro como propriedade da viúva, Isabel Maria de Souza (3242x3000); e a Fazenda Carrapato, sob os cuidados do Capitão Francisco Alves da Cunha Carvalho (2116x3000) [xiv].
Em 1819, pelo inventário de Maria Isabel de Souza, tem-se certo perfil da estrutura de uma dessas propriedades, o Engenho do Barreiro, enquanto uma unidade de produção e comercialização mista no período açucareiro e pré-cafeeiro. Comandada por uma mulher por cerca de quinze anos.
No rol dos bens fica claro duas frentes de plantio característica da época, sem mencionar, porém, o volume de produção de ambas. Aparecem alguns quartéis de cana, avaliados em 80$000; e alguns de café, em 84$000; e 50 alqueires[xv] de café para socar (80$000). O que denota período ainda de pouco fausto, em que o resultado financeiro parece ainda pífio. Cuja orientação direcionava-se para uma vida de subsistência, numa unidade autossuficiente. Mas que não deixou de proporcionar uma vida doméstica com certo conforto. Apesar de, em 1817, a viúva aparecer recenseada, com 62 anos, em São José do Barreiro-SP, apenas designada como agricultora, com 16 escravos ao seu serviço, com uma cultura de subsistência[xvi].
O monte mor foi orçado em 14:830$995, grande parte no valor das terras, avaliadas no total de 9:115$200 (61,5%), seguido do valor de 2:414$000, referente ao plantel de escravos (16,3%), e as benfeitorias, somadas em 1:194$000 (8%). Assim como as casas e os móveis em 1:562$850 (10,5%). As dívidas ativas[xvii] foram poucas, no total irrisório de 562$945 (3,7%). E as passivas em 2:198$249[xviii] (14,8% relativo ao monte mor), ao herdeiro Capitão João Ferreira de Souza, e ao co-herdeiro[xix] Capitão Joaquim Lopes Guimarães, e despesas com o Padre Manuel Antônio e com o funeral. Sendo que para o herdeiro Capitão João Ferreira de Souza existia pendente “que toca de sua braça por parte Materna...[xx], distribuída entre dívidas de outros herdeiros ao monte do inventário, meio dote, escravo, terras, e trastes agrícolas[xxi].
Neste sentido, os bens rurais representavam o grosso dos bens, notadamente as terras, escravos e as benfeitorias que davam o sentido de sobrevivência da família e certo luxo que começava a despontar naquele inicio de século, principalmente com produtos importados da Europa.
No quesito bens de raiz[xxii], vê-se como estava constituída a parte física da sede, dividida entre casas de morada, a casa do paiol, cozinha, casa no terreiro, paiol, monjolo, galinheiro, senzalas, engenho com seus pertences de madeira. Como assim também casa casas de moradas na vila, na rua direita, com portas e janelas, na vila de São José do Barreiro, e mais dois lanços de casas cobertas de telha com porta e janelas, na vila de Rezende[xxiii].
De uso pessoal corporal, peças de ouro, representado por caixilhos e cordões com crucifixo. De uso doméstico, de prata, cobre e ferro, utilizados na cozinha: colheres para chá e tirar açúcar; facas com cabo de osso, chocolateira[xxiv], tachos, caldeirões, bacias, almofariz[xxv], bandeja, candeias, escumadeira[xxvi], jarros, copos de vidro em tártaro e com mercúrio, pratos de louças (33), xícaras e pires, canecas, bule, tigelas de louça, açucareiro, leiteira, frascos e panelas. Nos quartos foram vistos e avaliados: catres, tamboretes, cadeiras de diversas formas e utilidades, mesas, bancos, estrado, toalhas de paninho bordadas de linho, guardanapos e mancebo. E no serviço de quarto: lençóis e fronhas de bertanha[xxvii], colchas forradas de elefante, colchas de lã de Minas, colchas de algodão de São Paulo, colchas de baetão[xxviii] e retalhos, etc.
A indumentária consistia em vários tipos roupas feitos de diversos tecidos, mantas, chapéus, camisas de morim da Irlanda, saias de linho e de Bertanha, chinelas, etc. Além de aparato para corte e costura. E vários tipos de móveis, incluindo um oratório com todas as suas alfaias.
Para os serviços profissionais, diversos instrumentos agrícolas e para oficina de carpintaria e para uso do engenho. E para a realização desses dezesseis escravos, com idades variando entre sete e trinta anos. Bem como animais para uso interno do engenho e fazenda.
Com todas essas informações, embora precárias, infere-se que em momentos específicos a situação sócio-econômica de João Ferreira e de sua família é bem clara.
Com a sua chegada aos arredores da futura São José do Barreiro, a pujança não parece ter sido uma constante, mesmo em se tratando da sede da fazenda ainda ser construída por técnica antiga e simples, em estilo despojado de luxo. Muito mais ao estilo da vida prática e dura daqueles tempos, visando a operacionalização do usufruto da terra.
Em pouco mais de dez anos de assentamento em Barreiro, João Ferreira apenas trabalha na montagem e investimento da sua agricultura, voltada necessariamente para o sustento da família, investindo no excedente da produção, vendendo-o para o Rio de Janeiro. Período que pode ser caracterizado como campesinato, de situação quase inferior dentro dos quadros da sociedade, na labuta diária para ascender econômica e socialmente. E ocupar posição de certo destaque, em preparo ao futuro dos filhos, que serão aqueles que realmente desfrutarão do sucesso da cultura cafeeira mediante as heranças paternas e maternas. Totalmente estruturadas em termos físicos (sem os gastos com a aparelhagem de uma unidade de produção) e em prestígio social.
A partilha dos bens, nesse caso, e como acontecia na maioria da economia brasileira, foi fundamental para deixar os filhos com quinhões satisfatórios de terras propícias para o cultivo da rubiácea. As sesmarias recebidas e as demais anexações de terra por compra, já partilhas, foram transformadas em unidades potencializadas, com sedes portentosas, com desfrute de luxo, pela riqueza e pelo status social substancial.
No momento de sua morte suas benfeitorias produziam açúcar, aguardente e era fazenda de criar, estando em pleno funcionamento naquele inicio do século XIX. Proporcionando estabilidade e conforto. O que possibilitou ingressar politicamente na comunidade que ajudou a fundar, ocupando o posto de Alferes das Ordenanças[xxix] da vila de Areias. Embora fosse cargo inferior ao de capitão.  
Uma segunda situação, pós-morte do titular, é quando a viúva e os filhos assumem a gerência das unidades, coincidindo com o período de transição da cana para o café. É o momento em que todos, sob o regime da mão de obra escrava e dos filhos, trabalham para manter o nível de sustentação econômica e social, tendo cada herdeiro auxiliado a viúva na direção dos negócios, mesmo que alguns deles já estivessem independentes e casados. Cada qual construindo o seu próprio viver.
Por esse tempo, a Fazenda Pau D’Alho passava das mãos do alferes para um dos filhos mais velhos, o Coronel João Ferreira de Souza, que pelo entender dos documentos foi o responsável pela montagem definitiva de sua sede, aparelhando-a com maior número de senzalas, dando-lhe a feição similar de feudo autossuficiente. Como se percebe, em 1858, no inventário do mesmo coronel, cujos dados constantes denotam uma fazenda de natureza mista, de plantação de café (212 mil pés), criação de animais (carneiros, porcos, etc.) e de serviço de tropas (30 bois de carros e 115 bestas, sendo alguns arreados). Em que o monte mor[xxx] alcançou a cifra de 768:807$530. Sendo a maior parte no valor dos escravos (58,7%), constante de 302 almas. E o restante nas dividas ativas (20,4%); terras (9,1%); casas urbanas e rurais (4,3%); cafezais (4,8%); animais de criação e de tropa (2%); ouro e prata (0,3%); móveis (0,1%); cobre e ferro (0,09%)[xxxi].
O Alferes João Ferreira Guimarães faleceu por 1803, em São José do Barreiro, então freguesia de Areias, na Capitania de São Paulo, com testamento[xxxii]. Nomeou como seus testamenteiros, em primeiro lugar a sua esposa, Isabel Maria de Souza; em segundo lugar ao filho João Ferreira de Souza; e em terceiro a outro filho, Francisco Ferreira. Expondo, entre tantas disposições: prazo de quatro anos para que se apliquem todas as determinações testamentárias; que o seu corpo fosse envolto no Hábito de São Francisco (da qual era irmão); que seu corpo fosse acompanhado pelo reverendo sacerdote da vila, por todos outros sacerdotes presentes; que se dissessem duas missas de corpo presente e que o seu corpo fosse sepultado na matriz da vila.
Deixando os seguintes filhos: Capitão João Ferreira de Souza; Alferes Francisco Ferreira de Souza; Mariana Ferreira de Souza; Isabel Maria de Souza; Tereza Maria do Nascimento; Ana Joaquina Ferreira de Souza; Margarida Ferreira de Souza; Catarina Ferreira de Souza; Inês de Santa Leocádia; Anacleta Joaquina Ferreira; José Ferreira de Souza; e Maria Ferreira de Souza.


[i] Batizada por 1755, na antiga freguesia dos Prados, filha de João de Sousa Freitas e de Maria Emerenciana de Santana. e f. com testamento em 25/03/1819, na mesma localidade de Areias.
[ii] Segundo Itamar Bopp, o Alferes Guimarães saiu das Minas Gerais devido a implicações na revolta mineira, juntamente com outras tantas famílias mineiras que se estabeleceram nessa região nesse período. Arquivo Itamar Bopp – Acervo digitalizado.
[iii] Não foi possível descobrir a origem e o porquê do apelido. Tais designações foram comuns e estavam ligados a fatos dos mais curiosos. Desde o local de moradia ou as características pessoais do portador, entre tantos motivos.
[iv] ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Repertório de Sesmarias, p. 229.
[v] Anexação de terras significava adquirir propriedades de vizinhos limítrofes, fosse por compra, troca ou em pagamento de dividas, de parentes ou não. Com o objetivo de expandir o empreendimento agrário ou aumentar o status social.
[vi] MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.) Fazendas de Café do Vale do Paraíba – o que os inventários revelam (1817-1915). Governo do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura, 2014. p. 294. “... Francisco da Cunha Menezes, do Concelho de Sua Magestade Fidelissima-Governador e Capitão General da Capitania de São Paulo, etc. Faço saber aos que esta minha carta de Sesmaria virem que attendendo a me representar Antonio João de Araujo morador no termo da Villa de Goaratinguita que fazendo o Capitão Mor da mesma Vila Manoel da Silva Reis, repartição das terras devolutas, no caminho novo que abrio para a Cidade do Rio de /01/, por ordem que para isso teve o meu anteceçor, deo a elle Suplicante huma sorte na paragem chamada o Barreiro, que comprehende huma legoa de testada, correndo pelas voltas do dito caminho de Leste ao este, em hum legoa de Certão a saber meia legoa do caminho para baicho, e outra meia legoa para sima, em rumo de Norte a Sul no dito Certão, partindo as ditas terras da parte do Rio de /01/ com as de Antonio da Silva, e da parte da referida Villa de Goaratinguita com Bento Francisco Teixeira...”.
[vii] MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.) Fazendas de Café do Vale do Paraíba – o que os inventários revelam (1817-1915). Governo do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura, 2014. p. 294.
[viii] Apesar dos nossos esforços, não foi possível encontrar o inventário de João Ferreira Guimarães.
[ix] Essa situação foi muito comum no período colonial e no Império, com o objetivo de evitar, entre tantas outros, as brigas judiciais e posses irregulares. Correspondia a situação do imóvel não medido e repartido judicialmente, sendo uma convenção respeitada, na maioria das vezes, pelos herdeiros.
[x] MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.) Fazendas de Café do Vale do Paraíba – o que os inventários revelam (1817-1915). Governo do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura, 2014. p. 299.
[xi] Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tombamento dos Bens Rústicos, 1817. Nessas declarações, muito simplificadas, o responsável, em cada vila, pela escrituração, registrava o nome do proprietário, o nome da situação rural, sua extensão em braças de testada e fundos, se estavam cultivadas e por quem, o número de escravos, e a residência do proprietário. Diferentemente de algumas localidades, como exemplo as vilas de Cunha e São Luiz do Paraitinga, em que aparecem também os limites e as confrontações. O seu significado indicava bens imóveis rurais, incluindo terras e mais benfeitorias a ele pertencentes, cuja preocupação foi o controle sobre a existência de terras devolutas e do seu real aproveitamento.  
[xii] Não foi possível definir em quais das sesmarias assentou-se a sede da fazenda Pau D’Alho, pela falta de documentos e por ser confusa o computo de braças de terras dos herdeiros declarados no Tombamento dos Bens Rústicos.
[xiii] Lê-se 905 braças de testada por 4500 de fundo, cada uma correspondente a 2,2 metros.
[xiv] Arquivo Público do Estado de São Paulo. Tombamento dos Bens Rústicos, 1817.
[xv] Medida equivalente a cerca de oito sacas de café. SILVA, Antônio de Moraes e. Diccionario da Lingua Portugueza. 4 ed., Lisboa, Imprensa Régia, 1831. Volume 1. Embora não saibamos o peso da saca.
[xvi] Arquivo Público do Estado de São Paulo. Maços de População de Areias – 1817 - fógo 274. Acervo Digital.
[xvii] Dividas de outros para com o inventariado.
[xviii] Dividas do inventariado para os outros.
[xix] Herdeiro indireto, netos ou esposos(as) dos herdeiros.
[xx] ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Repertório de Sesmarias, p. 229.
[xxi] MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.) Fazendas de Café do Vale do Paraíba – o que os inventários revelam (1817-1915). Governo do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura, 2014. p. 294.
[xxii] Bens de raiz referiam-se a terras, casas rurais e algumas vezes as benfeitorias.
[xxiii] MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.) Fazendas de Café do Vale do Paraíba – o que os inventários revelam (1817-1915). Governo do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura, 2014. p. 293.
[xxiv] Vaso de folha de cobre, ou de lata, que serve para fazer o chocolate. SILVA, Antônio de Moraes e. Diccionario da Lingua Portugueza. 4 ed., Lisboa, Imprensa Régia, 1831. Volume 1.
[xxv] Pilão de metal. SILVA, Antônio de Moraes e. Diccionario da Lingua Portugueza. 4 ed., Lisboa, Imprensa Régia, 1831. Volume 1.
[xxvi] Colher de metal, quase chata, cheia de buracos para limpar a calda de açúcar e outros líquidos de cozinha. SILVA, Antônio de Moraes e. Diccionario da Lingua Portugueza. 4 ed., Lisboa, Imprensa Régia, 1831. Volume 1.
[xxvii] Lençaria de linho fina, que se traria da Bretanha (França). SILVA, Antônio de Moraes e. Diccionario da Lingua Portugueza. 4 ed., Lisboa, Imprensa Régia, 1831. Volume 1. Na linguagem coloquial, ou mesmo formal, falava-se Bretanha.
[xxviii] Tecido grosso, felpado. SILVA, Antônio de Moraes e. Diccionario da Lingua Portugueza. 4 ed., Lisboa, Imprensa Régia, 1831. Volume 1.
[xxix] Corpo militar constituído de soldados milicianos que durante o período colonial teve diversas funções, de cunho militar e administrativo.
[xxx] Cifra correspondente ao valor do total dos bens avaliados.
[xxxi] MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (org.) Fazendas de Café do Vale do Paraíba – o que os inventários revelam (1817-1915). Governo do Estado de São Paulo/Secretaria da Cultura, 2014. p. 302 a 304.
[xxxii] Arquivo Público do Estado de São Paulo. Contas de Testamento. Juízo do Resíduo- (BR_APESP_JR_CO05499_DO13).
 

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Fazenda São Francisco – São José do Barreiro
Registro de Terras– 1856

A Fazenda São Francisco, no município de São José do Barreiro-SP, é uma das mais antigas fazendas do chamado “Vale Histórico”; em atividade desde 1813, segundo data gravada em uma das portas de entrada. No mesmo período em que o café adentrava o Vale do Paraíba, nas vilas de Bananal, São José do Barreiro e Areias.
Sua origem pode ser estabelecida a partir de documento existente no Arquivo Público do Estado de São Paulo, no conjunto denominado “Registros de Terras”, datado entre os anos de 1856-1857, cuja existência se justifica através da Lei Imperial nº 601, de 18 de setembro de 1850. A referida obrigava a todos os proprietários de terras a declararem suas posses perante o vigário da vila, que estaria incumbido de registra-las em livro próprio e posteriormente encaminha-lo para o Governo Provincial. Foi uma maneira sutil que o Governo Imperial teve para validar e revalidar áreas ocupadas, fosse por posse ou por título de sesmaria.
Desta forma, durante o ano de 1856, os proprietários da vila de São José do Barreiro declararam suas terras junto ao vigário da localidade. E entre os registros encontra-se a declaração de Antônio Ferreira de Souza, proprietário da Fazenda Carrapato naquele ano, com as informações de origem, tamanho da propriedade, tipo do imóvel e as confrontações do imóvel, como abaixo transcrevemos do livro original, em homenagem aos atuais proprietários, Eliana e Walton Ferreira Leite Júnior, que a mantêm de maneira excepcional.
Fonte: Arquivo Público do Estado de São Paulo – Registro de Terras de São José do Barreiro.
Imagem: Foto de Andreia Marcondes - da esquerda para a direita: Professor Francisco Sodéro Toledo (IEV), Eliana Ferreira (proprietária), Joaquim Roberto Fagundes (IEV) e Heloísa Guimarães Freire (IEV), tendo ao fundo uma das laterais da fazenda (por ocasião das atividades do pré-simpósio 2013, do Instituto de Estudos Valeparaibanos, realizadas no entorno da sede).