domingo, 29 de agosto de 2010

Joaquim Nabuco Essencial

O conjunto de escritos de Joaquim Nabuco é resultado de uma vida intensa e do olhar definido sobre aspectos importantes da história do país na segunda metade do século XIX. Mas, são obras pouco difundidas e, consequentemente, desconhecidas do grande público. Com exceção de “Minha Formação” e “Abolicionismo”, outros escritos ficaram restritos ao público acadêmico. E, que agora, em parte, estão acessíveis por bom preço e poderão servir de leitura atenta para historiadores e leigos com o lançamento da obra “Joaquim Nabuco Essencial”, pertencente ao selo Companhia das Letras/Penguin, sob a coordenação do historiador pernambucano Evaldo Cabral de Melo, com introdução, notas e cronologia.
Joaquim Nabuco foi um dos grandes símbolos brasileiros da luta pela abolição dos escravos e da diplomacia brasileira. Serviu cargos consulares em diversos países da Europa e o primeiro embaixador brasileiro em Washington, além de ter sido o responsável pela defesa do território nacional na questão de fronteiras com a Guiana Inglesa, ocasião em que elaborou um estudo pormenorizado sobre o assunto.
Na obra recém lançada divide-se em dois eixos principais: Textos Abolicionistas e Textos Políticos e Historiográficos. No primeiro eixo o leitor poderá ler Massangana; O Abolicionismo; Campanha Abolicionista no Recife, 1884; Dois Opúsculos; Discursos Parlamentares. E, em textos Políticos e Historiográficos: Balmaceda; a Intervenção Estrangeira, Um Estadista do Império e Conferências nos Estados Unidos.
Vale conhecer, principalmente por abranger os períodos do Império e da República.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Honoré de Balzac e o Vale do Paraíba

Em 18 de agosto de 1850 morria o escritor francês e imortal da literatura universal Honoré de Balzac. E para quem conhece parte de sua obra, não poderia deixar de lembrar a data e escrever algumas linhas sobre um gênio que ousou dedicar a sua vida para a literatura. Homem que sofreu atribulações no decorrer da vida e mesmo assim construiu uma obra gigantesca, incomparável e única.
Inúmeros foram os escritores e intelectuais que reconheceram ter aprendido muito mais sobre a história da França em seus livros do que em qualquer outra obra.
Balzac construiu por romances uma história da sociedade francesa do final do século XVIII e XIX, através de incontáveis personagens e temas, que ele próprio intitulou de “A Comédia Humana”. Um retrato social do país percorrendo principalmente pessoas socialmente bem colocadas, mas também anônimos e coadjuvantes, expressando ideias, ideais e psicologia. Parece não haver comparativos nesse campo e isso faz lembrar o quanto a literatura é importante para a história, por trazer no seu bojo a vida em seu cotidiano. Guardada as devidas proporções e não entrando em méritos de discussão de comparações pontuais sobre a questão narrativa ou as maneiras diferenciadas de se construir textos históricos e literários, o conjunto da obra de Balzac faz pensar sobre o elemento humano enquanto agente da história, podendo dele extrair incontáveis sugestões de pesquisa histórica para a região do Vale do Paraíba, seja em fontes oficiais ou na literatura, como, por exemplo, no último caso, Monteiro Lobato, Waldomiro Silveira, Cassiano Ricardo e, mesmo na música, como Dilermando Reis, Bonfiglio de Oliveira e tantos outros.
Todos trazem marcas da história, reflexos de pensamento de época, maneiras de agir e sentir, relacionamentos amorosos, conflitos cotidianos de vizinhos e outros acontecimentos, que muito significam para a construção histórica.
O caso do Vale do Paraíba, nesses aspectos, se constitui em riqueza ímpar, por sua antiguidade, cronologicamente do XVI ao XX, de personagens múltiplos, óbvios e esquecidos. Pautando em Balzac, por sua multiplicidade de homens e mulheres, vivendo à margem da história, surgem as perguntas, onde estarão os índios, com suas tabas e costumes?; o que seria o bandeirante valeparaibano?; qual seria o ideal de vida do sitiante, da prostituta, do seleiro, do carpinteiro? Como se dava na realidade o relacionamento entre eles? E o que dizer das mulheres solteiras com filhas, sendo de famílias conhecidas como tradicionais? Que atitudes pautava o senso comum diante de fatos escandalosos no seio das famílias? Existiriam rejeições, aceitações e acomodações? Hoje meu inimigo, amanhã, meu amigo, laços de parentesco ora dissociados, ora acoplados as conveniências de cada conflito. E a grande massa de agricultores, qual seria sua visão de mundo, mesmo sendo eles pertencentes ao quadro dos iletrados? E os operários, os fazendeiros falidos com famílias? Onde estará a grande massa da história no Vale do Paraíba?
Estão nos escritos particulares perdidos no baú das famílias, nos processos de crime, briga de terras, execuções de hipotecas, reclamações trabalhistas, na cultura oral não resgatada, enfim, em documentos que não pegamos. Neles, as vozes dos anônimos falam e deixa perceber o quanto do cotidiano do Vale ainda não se conhece.
Nos 160 anos da morte de Balzac, sua obra literária ensina ao historiador o olhar diferente, ousado, para buscar no conjunto as pequenas partes que compõe o significado das relações esquecidas. E nos diz que a história do Vale precisa de um novo pensamento e uma nova escrita.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Tema para o Simpósio de História do Vale do Paraíba - Nossa Proposta foi Vencedora

A documentação do Vale do Paraíba sempre foi uma preocupação em minha experiência de vinte e cinco anos trabalhando com pesquisa histórica. Primeiro por conhecer de perto a riqueza nela contida; em segundo, por ver a situação de conservação e guarda dos acervos da região; em terceiro, por saber que minimamente foi utilizada para o aprimoramento do conhecimento histórico na região.
Partindo dessas premissas é que propus no último dia 14 de agosto, em São Luiz do Paratinga, o tema “Documentação, Pesquisa e Educação: Um Novo Pensamento para a História do Vale do Paraíba”, que foi aprovado e que será discutido no próximo Simpósio de História do Vale do Paraíba, no Centro Salesiano de Lorena, sob a batuta do Instituto de Estudos Valeparaibanos.
Em todos esses anos, poucos foram os historiadores que renovaram a historiografia valeparaibana por meio de documentos inéditos. Poucas foram as medidas de preservação colocadas em prática. A falta de incentivo por parte das academias e das universidades, e o precário ensino da história e da arquivística deram margem para tais situações. A região está ilhada, necessitando urgentemente viabilizar projetos de conservação, guarda e elaboração de instrumentos de pesquisa capaz de colocar a região no rol de desenvolvimento alcançado por outras localidades do país, para, assim, acompanhar as novas tendências historiográficas em pauta nos mais importantes cursos de pós-graduação. O Vale do Paraíba é uma das mais antigas regiões de São Paulo e, portanto, com um patrimônio antigo a ser preservado. E, na onda de preservação do meio ambiente e da cultural imaterial, ficaram esquecidos os arquivos e os documentos.
E, para tanto, é adequado colocar em pauta três grandes eixos importantes para o tema: a conservação e divulgação das fontes documentais, a pesquisa histórica na região, educação e pesquisa histórica na construção do conhecimento e da cidadania.
O primeiro, pela situação de muitos arquivos, particulares, institucionais ou governamentais, estarem em condições precárias de guarda e conservação, por falta de conhecimento, informação e gestão adequada. São situações que demandam projetos técnicos elaborados por profissionais de diversas áreas e, portanto, orçamentos específicos e de alto custo; o que obriga a recorrer ao incentivo cultural, por vezes, complicados, burocráticos e desconhecidos, por grande parte dos dirigentes e funcionários detentores de acervos. A proposta seria colocar em pauta as diferentes demandas existentes no setor, desde as configurações técnicas de abrigar, conservar e divulgar, até as questões de ordem burocrática técnica para elaboração de projetos e captação de verbas, congregando elementos das esferas governamentais, acadêmicas (gestores, professores e alunos), pesquisadores, e o mais importante, as comunidades onde existem acervos, pois a principal meta da preservação e divulgação de um patrimônio advém do conhecimento de sua importância por parte da população.
O segundo eixo, a pesquisa histórica no Vale do Paraíba, se reveste na intenção de criar novos mecanismos de incentivo à pesquisa e ao conhecimento das fontes existentes, bem como a contínua prática e exercício da profissão de historiador, principalmente na seara acadêmica, com o fim de escrever, reescrever e pensar a região, de maneira que seja aceita e reconhecida de qualidade e de superior contribuição para o conhecimento. Dentro destes pressupostos, entra em discussão, entre tantos itens, o ensino da pesquisa histórica nas academias da região, a prática de conhecimentos teóricos obtidos na graduação sob a perspectiva de estágios em arquivos; leitura e interpretação de documentos; continuidade dos trabalhos de conclusão de curso (TCC); iniciação científica; e encaminhamento, através de cotas, de alunos de faculdades particulares regionais para os cursos de pós-graduação das grandes universidades brasileiras, com temáticas que coloque em pauta o Vale do Paraíba. Formação de grupos de estudos continuados seja dentro ou fora das universidades, incentivados por entidades como a FAPESP, CNPq e outras.
O terceiro e último eixo, a questão fundamental do ensino da história nas escolas particulares e públicas na região, tendo em vista a valorização do patrimônio e da cidadania através do estudo histórico, aplicando para tanto, propostas que transformem a pesquisa histórica em conhecimentos disseminados para a comunidade pela via da educação na fase de formação do individuo. Projetos que possibilitem trabalhar com documentos em salas de aula, de maneira lúdica, onde se deve discutir temas que despertem a busca do conhecimento pela pesquisa.
Assim, quero crer que as possibilidades de mudança estão abertas e todas as propostas para elaboração de um simpósio de qualidade serão bem aceitas. Que os responsáveis pela organização do próximo simpósio do IEV estejam atentos para as ideias aqui colocadas como de outras que virão. Vamos continuar com o tema.
Agradeço o apoio do Professor Nelson Pesciotta, Presidente do IEV; Professor Diego Amaro de Almeida; alunos, ex-alunos e professores de História da Unisal, e a todos os presentes na Assembléia de aprovação do tema.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Revendo São Luiz do Paraitinga

O último dia do Simpósio de História do Vale do Paraíba-2010 teve lugar em São Luiz do Paraitinga-SP, onde tivemos a oportunidade de constatar a força dos moradores daquela cidade diante da calamidade ocorrida em janeiro último, quando parte da área urbana ficou submersa pelas águas do Rio Paraitinga.
Contando com ajuda de diversas localidades e de vários órgãos de preservação a cidade está renascendo com força renovada e o seu símbolo maior, os casarões do século XIX, continuam, em parte, de pé, e os que caíram serão reconstruídos.
Mas o maior patrimônio, que é a sua gente, continua a mostrar a sensibilidade, a hospitalidade e a simplicidade costumeiras, mantendo a energia de sua raça e a tradição imaterial única e importante na região, como símbolo de um povo. Como tivemos a oportunidade de ver e ouvir através do cordel do Ditão, artista e morador na cidade: “caíram as casas, mas o povo não esmoreceu. Passou e agora estamos firmes para continuar a cidade.
Todos estão de parabéns por retirar dos escombros a coragem para continuar viver. Viver que é a essência da história.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Fontes Primárias - Produção, Patrimônio, Conservação e Divulgação: Repensando a História do Vale - Um Tema para o Próximo Simpósio do IEV

Com o avanço da historiografia desde a década de 1970, pela produção acadêmica, revolucionando o olhar sobre a história do Brasil, a importância das fontes primárias teve novo vigor, seja para novas interpretações ou para sua conservação como patrimônio.
Os principais historiadores, como agentes do pensamento histórico e, ao mesmo tempo, como difusores do conhecimento, seja nas salas de aula ou em grupos de pesquisas, contribuíram fundamentalmente para que houvesse uma revisão de conceitos e práticas na escrita da história, aplicando métodos e teorias que deram abertura e dinamismo ao diálogo com documentos considerados tradicionais e positivistas.
Tomando exemplos de autores franceses, americanos, ingleses, historiadores, economistas, antropólogos e sociólogos reinvestiram em temas já estudados e retiraram das fontes escritas verdades até então escondidas no submundo das grandes estruturas, fazendo ver para a comunidade científica que autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, tinham razão ao valorizar o uso de fontes escritas na elaboração da história. O que gerou, consequentemente, liberdade de ação para pensar nas múltiplas e complexas facetas da formação brasileira, revolucionando, desse modo, a maneira de valorizar o documento, analisar suas formas e escrever sobre temas consolidados que não correspondiam com a realidade histórica. A cada retorno ao mesmo documento ou a outros complementares ao tema que investigavam, outros links se abriram e novas propostas de pesquisa surgiram no cenário acadêmico, realçando a importância das fontes primárias sob outro prisma e, assim, a necessidade da releitura, da conservação, divulgação desse patrimônio.
Atualmente, as grandes universidades têm produzido muito dentro dessa perspectiva, principalmente a USP, a UFF, a UFRJ, a Unicamp e tantas outras. Nunca se produziu tanto na história do Brasil, sejam temas gerais ou regionalistas. Os protagonistas saíram a campo em busca de arquivos em regiões interioranas e os resultados foram estudos de caráter regional que deram dinamismo ao mundo da economia, da política e da sociedade em diversas localidades e momentos da história. As grandes editoras do país, mesmo as médias ou menores, tem dado ênfase em publicar os resultados dessa nova fase. E, agora, estão interessados no Vale do Paraíba, a academia, os professores e as editoras.
E nós, o que estamos fazendo? Onde nos encontramos? Talvez seja injusto dizer – não acompanhamos a dinâmica produção histórica dos últimos 30 anos. Não exploramos o nosso patrimônio documental, não o colocamos no patamar devido. Estamos perdendo o bonde da história. Estamos deixando passar a oportunidade de colocar no cenário brasileiro a região e os nossos pesquisadores.
O vale é rico em história, por ser local antigo e ligado aos primeiros tempos da colonização e a documentação mostra a multiplicidade de caminhos para revisitar, escrever e reescrever a nossa história.
Não produzimos na academia ou fora dela; não conservamos e não divulgamos; não socializamos o conhecimento do Vale do Paraíba e de seu patrimônio. Tudo individual, doméstico, difícil.
Está na hora de pensar e colocar em prática as inúmeras possibilidades que a documentação escrita pode trazer seja para o público acadêmico, para especialistas de outras áreas, para alunos, ou para o homem valeparaibano.
A região não foi somente o café, luxo, o escravo e o fazendeiro. Foi muito mais. Um mais que desconhecemos e, portanto, não entendemos e não preservamos.
E a proposta é redirecionar projetos que modifique a situação de marasmo que se encontra a documentação e a pesquisa no Vale do Paraíba, abrindo a partir daí, possibilidades de socialização do conhecimento através da conservação e divulgação das fontes escritas. O documento não está em si apenas, mas no diálogo que proporcionarmos a ele e vice-versa.
Para o próximo Simpósio de História do Vale do Paraíba, que se concretize esse tema, para assim, abrirmos temas correlatos ao assunto. E que seja realizado em Guaratinguetá, uma das mais antigas vilas da região.

sábado, 7 de agosto de 2010

As Roças de Bento Rodrigues Caldeira – Século XVII

O povoamento do atual município de Lorena está ligado ao caminho para as Minas Gerais, ao aprisionamento de índios, mas, sobretudo pela existência de extensas áreas de fronteira comercial e agrícola, que contribuiu para o estabelecimento de famílias nessas áreas, onde existiram atividades econômicas concomitantes. A primeira, de necessidade primária, que foi a utilização da terra para sobrevivência, por aqueles que não possuíam cabedais suficientes para expedições ao sertão dos minérios; a segunda, em função da estratégica localização no caminho para as Minas Gerais, que possibilitou a formação de um estreito relacionamento socioeconômico intra-regional por intermédio de redes de crédito, abastecimento e transporte de mercadorias.
Portanto, o povoamento da região está ligado mais ao circuito enunciado do que aos grandes empreendimentos bandeirantes para aprisionamento de índios ou unicamente mineração, mas por motivos ligados entre si que configuram uma realidade histórica distinta e complexa vida social e econômica. Havia possibilidades de ascensão, mesmo que fosse por uma vida sedentária. Assim, como existiam homens dispostos ao espírito de aventura, mudando de área através de bandeiras ou por iniciativa própria, levando consigo suas famílias, também existiam homens que fizeram o verdadeiro povoamento do Vale do Paraíba, recebendo sesmarias, cultivando suas roças e criando raízes por via do casamento com seus vizinhos de terra.
Como a título de exemplo referido, o possivelmente paulista Bento Rodrigues Caldeira, que se estabeleceu em terras de Lorena no final do século XVII, quando a dinâmica comercial entre Minas Gerais e o Vale do Paraíba já estava estabelecida por intermédio do comércio para abastecimento, transporte de mercadorias e ouro. Uma breve leitura do seu inventário mostra um reflexo momentâneo da situação econômica naquele período.
Suas famosas “roças”, citadas em alguns documentos, fora possivelmente adquiridas por sesmaria, devido ao seu tamanho, que em termos de área representava o tamanho padrão da doação de terras feitas pelo governo português naquele momento: quinhentas braças de terras, no porto de Pacarê (Guaipacaré), e outras duzentas braças com légua e meia de sertão em lugar não determinado pelo documento.
Ao falecer em 1712, deixando viúva Maria Ribeiro Baião e nove filhos de dois casamentos, sendo seis homens e três mulheres, Bento Rodrigues Caldeira possuía uma situação econômica favorável, mas não exclusivamente pela exploração e uso das terras, mas por outras atividades paralelas. O total dos bens, avaliados pelo Capitão Manuel da Costa Cabral e pelo Capitão Thomé Rodrigues Nogueira do Ó, alcançou o monte bruto de 10:524$360 (dez contos, quinhentos e vinte e quatro mil e trezentos e sessenta reis), quantia considerável para a época, sendo que deste, pouco mais da metade eram dívidas ativas (55%), ou seja, de pessoas que a ele deviam, e o restante, em escravos (3:132$000), gado vacum, roça lavrada, terras e trastes domésticos.
Nas terras possuía um canavial, sem denominação de quantidade, e criava gado (17 cabeças adultas, 8 bezerros e 3 novilhas), cabras (6 cabeças) e porcos (12 cabeças e 2 capados grandes); e plantava, este, avaliado em cem mil réis.
Os escravos, em número de trinta e seis, em certo sentido impressionante por não se conhecer as formas de sua utilização, estavam representados principalmente por pequenos núcleos parentais, ao contrário do que dizia a historiografia a respeito da constituição de famílias na sociedade escravista. Do total, 21 eram mulheres, em parte viúvas ou recém-nascidas e algumas órfãs. Eram negros guiné e carijó, constituídos por marido e mulher, com filhos e sem filhos, avaliados entre 10$000 réis (dez mil réis), no caso uma criança recém-nascida, e 200$000 (duzentos mil réis), homem ou mulher adultos.
Os trastes domésticos que, ao contrário do imaginário histórico prevalecente, denotam a extrema simplicidade que vivia o valeparaibano no inicio dos setecentos: uma casa de palha sem móveis e a ausência de roupas que merecessem avaliação, a exceção de um capote azul usado, avaliado em 6$000 (seis mil réis). Uma casa que parece mais abrigar apetrechos para a produção da pinga, do que local de morada, o que é corroborado pela presença de tachos de cobre, tamboladeira, caldeirinha, machado, exó e um alambique de cinquenta libras. Não se teve notícias de uma casa para os escravos. Com artigo de luxo, somente dois cordões de ouro, com 53 oitavas, avaliados em 64$200 (sessenta e quatro mil e duzentos e réis).
No setor de dívidas ativa é interessante observar que o dinheiro foi marcante como fonte de renda e crédito no período. As dívidas de Bento Rodrigues estavam espalhadas entre trinta indivíduos de localidades diversas, como Taubaté, Guaratinguetá, Rio de Janeiro, São Paulo, Lorena e no Caminho paras as Minas. Embora não exista discriminado o objeto gerador do crédito, por vezes, podia representar todo tipo de transação, agrícola ou comercial, que, em alguns casos, levava anos para saldar, passando aos herdeiros o direito de cobrar, fosse durante o processo de inventário ou posteriormente.
Assim, um estudo serial e com análise mais profunda, principalmente para a segunda metade do século XVIII, traria intermináveis respostas da vivência do homem colonial na região, percebendo que muito do que reproduzimos pode não corresponder com a realidade histórica.
Fonte: Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá. Inventário de Bento Rodrigues Caldeira, 1712.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Lembranças em Documentos: O Desatre do Bonde - 1952

São interessantes as lembranças que possuímos das histórias contadas por nossos país e avós. Muito mais ainda, são importantes, por proporcionarem curiosidade e possibilidade de pesquisa histórica nos documentos, como forma de conhecer o fato em si e as suas correlações com a época.
Sendo assim, para os vários casos que a memória registrou em flashes, podemos descobrir documentos que poderão servir de instrumento de averiguação e análise, contrapondo memória e história. Entre eles, séries documentais pouco utilizadas: processos crimes, processos do júri e processos cíveis. Principalmente os inquéritos policiais que registraram as várias faces de um mesmo acontecimento pela ótica de suas diversas testemunhas.
Seguindo tal raciocínio, é que relato, como simples ilustração, a memória sobre o acidente numa antiga linha de bondes e que foi contado por muitos e registrado nos documentos do judiciário.
Acidentes envolvendo veículos e pessoas não é um fato dos dias atuais, pois, com o advento dos meios de transportes movidos a motor ou energia, principalmente no inicio do século XX, sempre estiveram presentes no cotidiano das grandes e médias cidades do país, fossem eles de particulares ou de transporte público.
Em Guaratinguetá e Aparecida não foi diferente, principalmente por casos envolvendo os bondes que circulavam entre as duas cidades. Sendo um deles, objeto de lembrança específica de meus pais e que ocorreu em 1952 no município de Aparecida, quando, na oportunidade, um dos veículos saltou dos trilhos e chocou-se com uma casa, vitimando uma pessoa.
O acidente gerou inquérito policial na vizinha cidade de Guaratinguetá. E no processo, finalmente verifiquei corretamente como aconteceu o fato.
A linha de bondes ligando as duas cidades, naquele período, pouco antes do encerramento das suas atividades (1956), tinha sua garagem estabelecida em Guaratinguetá, na esquina das ruas Doutor Martiniano e Comendador João Galvão, saindo dali para o município vizinho, onde, segundo descreveu o saudoso poeta aparecidense Sebastião Papandréa, seguia "... pela Avenida Zezé Valadão, ganhando depois a Rua Barão do Rio Branco... subindo depois pela Rua Oliveira Braga (antiga Rua Nova), passando pela Travessa Dezessete de Dezembro (rua do antigo Cine Aparecida), para chegar ao ponto final, próximo à Farmácia Nossa Senhora Aparecida...". E retornava novamente pela Rua Oliveira Braga, refazendo o mesmo trajeto de volta para Guaratinguetá, onde na Rua Rio Branco "... exisitia uma espécie de micro-rotatória, onde os bondes cruzavam em bitolas diferentes".
Foi justamente, no cruzamento referido, ao final da descida da Rua Oliveira Braga, esquina com a Rua Barão do Rio Branco, que aconteceu, no dia 13 de janeiro de 1952, por volta das 22:30, um acidente com o Bonde nº 7, da marca “The J.O.Brill, Cos.”.
Segundo o apurado pelo inquérito policial, a causa foi a fratura e total ruptura do varão longitudinal esquerdo do bonde, que impediu a atuação da alavanca de freios, ocasionado assim a perda do sistema de segurança. O que fez com que o bonde, dirigido pelo motorneiro Cornélio de Abreu e por Francisco Moreira dos Santos (Cabo Chicão), descesse em desembalada pela Rua Oliveira Braga, indo chocar-se violentamente com uma banca de jornal, que ficou totalmente destruída, com o prédio nº 3 da Rua Barão do Rio Branco, de propriedade do espólio de Maria Cândida Borges, ocasionando sérios estragos na mesma e no Bar São Benedito localizado ao lado da referida casa, pertencente a Dona Kaio Fukuda, que entrou, logo após, com pedido de ressarcimento pelos estragos sofridos. O veículo sofreu danos na parte frontal, principalmente no painel de controle, na alavanca dos freios mecânicos, no tejadilho, na divisão da cabina, nos três primeiros bancos e nos balaustres esquerdos. Segundo o depoimento das testemunhas, havia, naquele horário, que era último, excesso de lotação, sendo uma das vítimas foi Vicente Ourique de Aguiar e outros.

Imagem: Casa atingida pelo bonde. Processo Inquerito Policial - 1952 - Primeiro Ofício. Museu Frei Galvão/Arquivo Memória de Guaratinguetá.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Uma mulher Parda e seu Testamento - Século XIX

A renovada historiografia brasileira dos últimos anos tem demonstrado que inúmeras verdades consolidadas não passam do resultado de interpretações pontuais transformadas em leis gerais.
E no universo feminino a regra não foi diferente, embora muita coisa tenha se observado nos últimos tempos.
Retornando aos documentos, os historiadores observaram uma realidade diferente para as mulheres em fins do período colonial e inicio do século XIX. E são aspectos principalmente no universo feminino de negras, pardas, crioulas e índias no Vale do Paraíba.
Notadamente encontramos muitos processos crimes envolvendo alforriados e escravos, o que em dado momento se faz interpretar que aquela camada da população somente tivesse seus direitos vistos aos olhos do dominador, quando haveria de ser pesada a pena, mas a verdade é que se nota um relacionamento social mais estreito e horizontalizado que costumávamos a ver nos livros de história.
Mulheres pardas, crioulas e índias, forras ou não, tiveram, em muitos casos, seus direitos reconhecidos na justiça, principalmente tratando-se do direito de testamento e legado de heranças, no mesmo estilo aplicado aos brancos livres.
Como forma de ilustrar e despertar para o tema, na região do Vale do Paraíba, transcrevemos o óbito e parte de seu testamento de Inácia Maria de Santana, falecida com 50 anos, em 22/10/1839, em Guaratinguetá, natural de São João Del Rey-MG e filha de pais incógnitos.

“Aos vinte e dois de outubro de mil oitocentos e trinta e nove, nesta vila, com todos os sacramentos, de idade de cinquenta anos, ao que parecia, de enfermidade interna, faleceu da vida presente Inácia Maria de Santana, natural da vila de São João Del Rey, Bispado de Mariana, parda, viúva por falecimento de Manuel Antônio de Oliveira Santos, era filha de pais incógnitos, exposta em casa de Gonçalo Garcia e Alves, foi seu corpo envolto em Hábito de São Francisco, por sim ter pedido antes de sua morte e sepultada nesta Matriz, ao pé do altar de Nossa Senhora das Dores e conduzida em caixão, acompanhada por mim e por todos os reverendos sacerdotes e coroinhas que se achavam nesta vila; se lhe cantou na rua cinco mementos e todos os reverendos sacerdotes lhe disseram missa de corpo presente; sua alma foi recomendada. Fez testamento, suas disposições quanto ao pio, são da forma seguinte: Institui por herdeiro necessário a João Nogueira da Cruz. Institui por seus testamenteiros em primeiro lugar a João Nogueira da Cruz, em segundo a Domingos José da Cruz, moradores em a Vila de Baependí, Província de Minas. Declarou que seu corpo fosse envolto com hábito da Senhora das Dores e sepultada em uma das sepulturas da Irmandade Senhora das Dores, se falecesse onde houvesse irmandade da mesma Senhora. Determinou que seu testamenteiro mandasse dizer as missas de corpo presente que pudessem ser, e fizesse o seu funeral a seu arbítrio. Declarou que seu testamenteiro mandasse dizer por sua alma, oito missas. Declarou ser sua vontade que ficasse forra e liberta a sua crioulinha Graciana. Que a crioula Maria fosse aplicada para as disposições do seu funeral. Que o mulatinho Simão e mais crioulinhas ficassem escravos do seu primeiro testamenteiro retro nomeado, durante a sua vida, ficando, outrossim, libertos e forros imediatamente depois do falecimento dele testamenteiro – seu herdeiro. E nada mais se continha quanto ao pio de que para constar mando fazer este assento que assino. O Vigário Colado Manuel da Costa Pinto.”


Imagem: Enterro de uma negra. Jean-Baptiste Debret.

Revista do IHGB disponível online

O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro foi fundado em 1838, no Rio de Janeiro e sua trajetória é rica em acontecimentos, assim como a contribuição de seus membros. E o reflexo está na principal publicação daquele órgão, a Revista do IHGB.
O pensamento histórico do século XIX está impresso em suas páginas, através de inúmeros artigos de profissionais que não eram historiadores, o que a converte numa fonte primária por excelência. Principalmente pelas informações que traz, sobretudo, os artigos sobre o Brasil existente em arquivos europeus.
Todo acervo, desde o final do século XIX, está disponível atualmente on-line para pesquisadores e historiadores. Basta acessar a página do Instituto e fazer download.
Visite e confira: http://www.ihgb.org.br/rihgb.php